na casa da minha avó tinha um papagaio que gritava Ana Ana Ana. ele vivia numa gaiola e chamava minha tia para cuidar da comida e da solidão. eu, na época, jamais imaginaria que devia ser uma solidão danada ficar gritando um nome dentro de uma gaiola dentro de um quarto dentro de uma casa. me ocupava tentando entender porque o papagaio se chamava Loro se ele era verde. inquietações para tapar o desespero. por que se eu me permitisse sentir a dor do papagaio, jamais conseguiria ficar em paz ali.

Loro me veio à mente esses dias. do porquê ter o Loro. quando foi que alguém teve a ideia de deixar o Loro na gaiola e manter ali o loro gritando Ana? poderia perguntar, mas, no momento, tenho achado outra inquietação para tapar o desespero: quando foi que morreu Loro e onde enterraram seu corpo? papagaio vive muito e de tanto gritar alguém há de sentir sua falta. eu não me lembro de sentir falta do loro e eu sentia tanta falta de tudo que me pego pensando se loro existiu de fato ou eu alucinei. existiu. por que me lembro do cheiro estranho do quarto e do alpiste. me lembro que era proibido pôr a mão na gaiola que o loro bicava. uma vez coloquei o dedo escondida da avó e da tia. verdade. ele bicava. fiquei feliz que ele bicava. se fosse muito bonzinho, tenho certeza de que choraria por ele viver morto. eu devia ter soltado o loro. mesmo que fosse pra ele voar rapidinho e cair com as asas cortadas. nem que fosse.

Maria Lira Marques, Sem título (2023)

o peixe que morreu eu lembro. porque ele morava no meu quarto e depositei nele um amor impossível. depositei no peixe um amor de mãezinha. escolhi aquele na loja de peixes. a loja de peixes vendia as cores como se fossem à pilha. um azul que se mexe mais. um verde que se mexe menos. um pintadinho que gosta de ficar no fundo. hoje eu jamais teria um aquário. minha mãe também não deixaria. estamos comovidas com os bichinhos. melhoramos, eu e ela. na época, tínhamos. Saí da lojinha de peixes com um laranjinha que não parava quieto. coloquei no meu aquário. que ficava no meu quarto. o aquário tinha uma luzinha bem baixinha sempre ligada. e era bom pra espantar o medo. estava sempre ali a luz e o peixinho que eu não me lembro do nome. eu, uma criança insone com medo da morte, gostava de ver o peixinho vivendo sem saber que peixe vive pouco pouquíssimo. achava que devia bom ser peixe. achava que devia bom não saber do vidro nem do aquário nem do mar ou do rio nem da imensidão que lhe foi tirada para que ele nadasse para a menina eu. lembro que estava chovendo muito e dando muito raio. acho que os raios eram mais fortes na minha casa. ou eu era mais fraca. talvez. o raio iluminou o aquário e eu vi o peixinho boiando. ainda em movimento, levado pra lá e pra cá. sem decidir nada. dormi rápido pra ver se o sono espantava a morte. no dia seguinte, pegamos o peixe com a peneira. meu pai jogou na privada. na época achei meio estranho. hoje acho que o peixinho prefere mesmo ser encanado.

Maria Lira Marques, Sem título (2022)
Maria Lira Marques, Sem título (2022)

da minha lagartixa Catarina lembro bem. ela era bem gordinha na barriga. e meio transparente, dava pra ver nela umas coisas pretas que acho que eram órgãos. tipo camarão, sabe? catarina morou no meu quarto e, passado o medinho inicial, vi que ela era dócil, gentil e que não me dava sustos nem nada. nunca muito perto e nunca muito longe. catarina era a companhia perfeita. de tanto gostar dela, inventei de fazer carinho. peguei catarina pelo rabo. o rabinho ficou na minha mão e catarina caiu. eu achava mesmo que tinha matado, com requintes de crueldade, a minha amiga transparente. chorei. o rabinho ainda se mexia e pensei que daria certo fazer um transplante de rabo usando o próprio rabo e fui tentar e. catarina tinha sumido. guardei o rabinho dela num gelo. pra caso ela voltasse e concordasse com a cirurgia. catarina voltou. sem o rabinho. viva. o rabinho foi crescendo de volta. catarina esperou o rabo crescer antes de ir embora para sempre. talvez para me tranquilizar talvez para me provar da sua superioridade. catarina, ainda te espero.

Maria Lira Marques, Sem título (2021)
Maria Lira Marques, Sem título (2021)

do jabuti da minha bisavó só lembro da gente procurando e ficando dias e dias procurando no quintal o jabuti da vovó Gusta. ele aparecia às vezes e estava sempre mastigando. ficava olhando um tempão. uma paciência. um vovô filósofo. um banguela de respeito. eu tinha me esquecido totalmente do jabuti da vovó Gusta até esses dias, quando meu sobrinho de sete meses estava comendo banguela uma banana. Falei pra minha irmã: meudeus, Bia, o jabuti da vovó Gusta!

sabia que a vida dava voltas, mas não pensava que demorava tanto. é que ela deu
volta       de       jabuti        no        quintal         do         tempo.


Liana Ferraz nasceu em Bragança Paulista, é escritora, atriz e criadora do Escrita Matinal. Antes de Um prefácio para Olívia Guerra, publicou três livros, sendo o mais recente o de poemas Sede de me beber inteira (Planeta, 2022) com quase vinte mil cópias vendidas. É doutora em Artes Cênicas pela Unicamp e pós doutora pela USP.


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Publicado por:Philos

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5 comentários sobre “papagaio e peixinho e Catarina e jabuti, um conto inédito de Liana Ferraz

  1. Adorei o modo que você contou suas memórias. Parecia que eu estava olhando como um filme as memórias surgindo sem muita preocupação com a lógica das narrativas mais próprias do pensamento meticuloso. Parecia que você estava falando de sua memória não escrevendo para nós. Obrigada por nos trazer essa experiência 💞💞💞

  2. Que lindo o lembrar dos pequenos animais de nossas vidas. Eu que tive um peixinho, gostava de lagartixas e abominava (e abomino até hj) pássaros presos, me senti dentro do texto. Que leitura gostosa:)

  3. Muito divertido o texto, e com uma fluidez característica da autora, que consegue nos transportar para o ambiente de suas lembranças de infância … Eu me identifiquei, pois já tive um peixinho de estimação, e tb gostava de uma lagartixa que vivia sob a geladeira da casa de meus pais!

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